A Dor...
Uma amiga querida perdeu dois grandes amores na mesma semana, num intervalo de cinco dias. Coisas que, infelizmente e, sim, acontecem. Ontem ela decidiu ir ao maracatu assim mesmo, tocar a vida, continuar a dormir e acordar. Ouvi alguém comentar que aquilo não era muito saudável...
Por quê? Eu deduzo que cada um reage às adversidades da vida da maneira que consegue. E esta não é a melhor ou a pior pra ninguém. As coisas são como são e, quando nos deparamos com esses "coices" só há duas opções possíveis: Fugir. Ou enfrentar. Minha amiga está enfrentando. Muito bem, diga-se de passagem, mesmo que eu saiba que lá na frente, o coraçãozinho cobre seus pedágios, seus atalhos, sua dor.
Digo isso da posição de quem perdeu a mãe muito cedo. E que teve de encarar as coisas muito cedo. E pelo fato de ter sobrevivido também. Para a minha amiga, que espero que leia, saiba que também fui à praia após o enterro da minha mãe. Saiba que também decidi tocar a vida como ela merecia ser tocada adiante. Saiba que fiz exatamente o que minha querida mãe gostaria que eu fizesse: sobrevivesse. E bem.
Então tá. Deixo aqui abaixo um textículo sobre essa perda, ou sobre o que essa perda teria causado em mim. mas a Dor, como afirmo no texto, é intransferível. Foi só uma maneira de deixar escrito que sinto muito. E que lhe desejo força. E só. O resto, a vida engendra de novo, ou recomeça mais uma vez. Sobreviva, amiga. E bem. Sei que vc vai fazê-lo, mas num custa muito reafirmar...
Réquiem para um grande amor
Mas era sempre aquela sexta-feira oca no meu peito...
Da Vida tal qual é
Um dia atrás do outro, uma noite no meio, nascer, crescer, conhecer, apreender o mundo com suas cores de mil distintos tons. Reproduzir, procriar, criar, reinventar, renascer. Derramar lágrimas na solidão, efusão de palavras por sobre o papel. Acordar. Dormir. E depois dormir mais uma vez. Dessa vez, para todo o sempre.
Vidas interrompidas.
Ausências inesperadas.
Um Grande amor
Ficar em pé. Balbuciar palavras. Andar. Correr. Seguir em frente. Caminhar mais uma vez. Distinguir palavras soltas, desarticuladas, cadenciadas ou não. Ouvir uma primeira canção de ninar, ser embalado em colo morno, ouvir estórias para dormir, aprender a banhar-se, vestir-se, rezar o Pai Nosso ao deitar-se em hora certa, portar-se adequadamente, desaprender palavrões, solidarizar-se com o próximo, respeitar o direito do outro, repartir o pão, esforçar-se para atingir um fim, suplantar medos, cumprir metas, amar.
Minha mãe. E tudo o que ela me ensinou. E por tudo daquilo que ela me fez. Molde imperfeito em busca de uma solução perfeita. Uma tentativa sincera de construir um novo (e melhor) mundo.
Da minha mãe
Ela trazia envolta em si um halo de delicadeza e esperança. Era baixinha e sua voz, doce e serena, saberia sempre me conduzir nos momentos mais inseguros ou incertos.
Ela ensinou-me as duas ou três coisas mais importantes que carrego em mim: além de ter me ensinado a ler - e, por conseguinte, gostar de ler - ela haveria de me ensinar a ser gente, a amar as pessoas, fazer amigos, e aprender a compreender os motivos pelos quais os outros, às vezes, nos machucam.
Ela preferia quadros a paredes. Livros a televisões. Música a festas. Refrescos a vinho. Sol a chuva. Montanha a mar. Renúncia a batalhas emocionais. Amigos e família a solidão.
Através dela, a única certeza de que haveria alguém que me amaria incondicionalmente, sem previsões ou reservas. Ela estaria sempre lá quando se fizesse necessária. Morássemos na mesma cidade ou a milhas de distância. Estivéssemos no mesmo ambiente ou dividindo um quarto de hospital qualquer, onde permanecemos juntas até onde nos foi possível. Até o dia em que ela dormiu. Para sempre.
Da Dor
A Dor é algo assim, indivisível. Não se doa ou se toma emprestado de alguém. Vai aonde deseja sem pedir licença, celebrar pactos de união ou discórdia. É um conceito muito mais livre do que já sonhei em ser um dia.
E a dor, a minha dor, foi a de não poder senti-la, ou externá-la. Foi segurar sua mãozinha fria e exercer, pela primeira vez, o papel de ninar uma canção que a fizesse dormir. Foi contabilizar os minutos e descobrir, felizmente e ainda a tempo, que cada nascer do Sol seria um espetáculo a ser apreciado, degustado em pequenas doses, sorvido e apreciado tal como merece.
Cada dia a seu lado em fase de doença terminal foi um belo e intenso aprendizado sobre paciência, esperança, gratidão e uma série de outras descobertas inusitadas e imprevisíveis, intraduzíveis como uma intimidade jamais testemunhada antes. Eu jamais a havia auxiliado a vestir roupas, jamais a havia ajudado a banhar-se, jamais havia imaginado partilhar desta sua intimidade compulsoriamente revelada.
E neste momento inconteste, quando os papéis, repentinamente, são invertidos e passamos a ser o provedor, aquele que cuida, vigia e ora pelo ser querido, sentimo-nos finalmente responsáveis pelos caminhos sinuosos da vida de outrem, que já se confunde há muito com a nossa, particular e intransferível.
O que seremos agora?
Da sublimação e desapego
Imagino que jamais choramos por quem parte. Choramos por aquele egoísmo insensato, pela falta que o outro faz em nós, pela ausência. Pela indiferença a nossos apelos sem sentido quando as coisas não saem conforme esperado, prometido ou imaginado.
E após a dor, aquela dura e cabal prova maior: a do desapego.
Deixa-me ver se me explico:
O desapego chega naquela fase em que nos perguntamos sobre escolhas possíveis. O desapego chega no minuto em que nos questionamos sobre o que seria melhor como um acordo entre as partes: de um lado, o ser amado que ora, sofre. Do outro lado de cá, nós - aqueles pobres mortais insensatos e egoístas como qualquer ser vivente que ama e deseja desfrutar da convivência com o ser querido.
Mas a Dor, essa mesma Dor que transita pela vida com tanta desenvoltura e elegância, sorrateira e tempestuosa, exigirá sempre uma resposta: o término da sua dor ou a do outro? Neste caso, a fim da dor do outro - do objeto amado - será apenas o começo da sua. O que escolher?
Eis o desapego: quando nos julgamos incapazes de desejar o prolongamento da dor (e da vida) do objeto amado e chegamos àquela conclusão dolorosamente lúcida, quando fatalmente descobrimos que a melhor opção – e única possível – será apenas o fim da dor - e da vida – do outro.
Eis o amor. Desejar o melhor ao objeto amado. A diferença neste caso é apenas a serenidade que nos deve acompanhar ao ter que dizer em algum momento, simplesmente, “Adeus”.
Finda-se o sonho. Finda-se um pouco do sentido que nos mantém vivos. Finda-se aquela parte nossa que habita o coração de outrem. Finda-se uma testemunha de nossas memórias e experiências em comum. Finda-se a dor do outro. Finda-se a vida.
Inicia-se a nossa. Apenas assume novas vestes. Apenas assume um novo papel.
E entre subterfúgios e ilusões, autodenomina-se nesse eterno despertar de “ausência”.
E esta? Sabemos apenas que é prima-irmã da Dor e de todos os seus conceitos associados. Alguns a chamam saudade. Outros, nostalgia. Outros, como eu, apenas calam.
Do engano, erro e acerto
Estou viva e bem. Não preciso lembrar de minha mãe, ou tentar enganar sua ausência. Ela está em mim. Mora cá dentro, tal qual criança escondida, mas que se revela através de meus valores, atitudes e gestos. Serei sempre aquele seu molde imperfeito em busca de uma solução perfeita.