Perdia o amigo, a piada jamais
E-mail enviado aos meus amigos quando do desaparecimento de Bebé, em 2006.
Queridos amigos,
A alguns, me perdoem pela ausência, pelo sumiço. Mas é que eu passei o final de semana tentando não cantar aquele samba triste que diz “tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”. Acontece.
Na última sexta-feira, minha amiga Macaca me ligou da redação do Correio Braziliense. Estava fechando a matéria sobre o desaparecimento da aeronave da Gol quando a Infraero divulgou o nome de 3 funcionários da empresa que estavam no vôo. Esdras estava nesta ainda não oficial lista das vítimas. A
essa hora, o avião estava apenas “desaparecido”.
Provavelmente sei que boa parte dos amigos listados aqui nem sabiam que ele tinha um nome tão….”bíblico”, pois a todos vcs a quem eu apresentei, conheceram ele por Bebé.
Incansável companheiro de farras e afins. Bastava estar numa mesa de bar e ele dar um sumiço que eu já sabia: tinha ido pro carro dar um cochilo. Lá ia eu atrás do moço após 30 min de sumiço. Sacolejava ele e dizia
– Bebé, vamos pra casa. Vc tá morrendo de sono, precisa dormir direito
Ao passo que ele, prontamente, respondia:
– Jovem não dorme. Jovem dá um tempo
Pois é. A vida deu um tempo a Bebé na última sexta-feira. E fazendo aquilo que ele mais gostava de fazer – viajar.
É estranho. Eu até sabia que fatalmente compareceríamos ao enterro um do outro. Ele, pelo menos, tinha deixado de fumar e se entregou às saudáveis práticas esportivas nos últimos anos. Trocou o Carlton e uma boa farra no Bar Beirute (na Asa Sul, pra quem não é de Bsb) por alguns anos de vida a mais.
Que vida?
E ele vai assim, em grande estilo. Com direito a três dias de luto oficial para a nação inteira. Aposto que, de onde estiver, deve dar aquela gargalhada e dizer “Eu não disse que eu sempre fui um cara que merecia muita atenção?”
Sou apenas mais uma de suas amigas. Uma entre todos os privilegiados amigos que ele colecionou ao longo de 40 anos. Destes, fomos amigos pelos últimos quase 15. Até então, ele era apenas meu primo. Quando eu completei 17 e ele já tinha 27, parou de olhar pra mim como aquela “prima-pirralha-pentelha”
(eram 10 anos de diferença) e selamos um pacto de amizade. Fizemos (os dois) a nossa primeira viagem à Europa, em 1995 (eu com 19, ele aos 29). Era a nossa primeira vez. Passamos um mês rindo, visitando meus amigos (àquela época ele ainda não tinha amigos por lá), tomando vinho, cerveja, comendo comida
italiana ou chinesa (aquilo que podíamos pagar). E brigamos. E rimos de novo.
De lá pra cá, eu visitei a Europa ainda duas vezes.
Bebé? desde 1995 ele jamais deixou de fazer uma viagem internacional. Fico feliz de ter sido a primeira pessoa que pôde compartilhar desta sua primeira experiência e apresentá-lo àquilo que viria a ser uma de suas maiores paixões: viajar.
E ele conseguia sempre tirar 45 dias de férias. Sempre emendava alguma coisa com a Semana Santa. Ou com o carnaval. Ou com aquele feriadão de sete de setembro. Era o cara. Simplesmente. Tirava 15 dias em solo nacional e outros 30 no exterior. Tudo legalizado, trabalhava dobrado, juntava as folgas, fazia
qualquer negócio.
Se não podia passar o carnaval todo em Recife, chegava no sábado e se despedia na segunda à tarde. Noronha – onde ele morou na infância – era sua menina dos olhos. Foi ele quem me levou à ilha quando, em 2001, depois de passar por uma barra pesadíssima, ele me arrastou pra ilha para passarmos o
natal juntos. Era assim: mamãe adoeceu (e depois faleceu), ele aparecia em Recife. Sua mãe morreu, eu me desabalei pra Bsb. Sempre estávamos dispostos a nos apoiar. Ele tinha a chave da minha casa e, não raro, ligava com o texto:
– Vamos tomar uma hoje?
Era a maneira dele me deixar saber que estava de passagem por Recife. Assim como fez há coisa de 35 dias, quando ia apenas fazer uma conexão aqui e tinha me ligado para passar duas horas com ele no aeroporto. Como o vôo atrasou, resolveu dormir em Recife. Queria comer um caranguejo.
Então é assim. Ele deixa amigos em Pernambuco (em Noronha, inclusive), em Bsb, no RJ, na Itália….em um montão de lugares pelos quais ele passou e contagiou as pessoas com sua irretocável alegria de viver.
Assim, deixo a última impressão.
Certa vez fiz um curso de alemão. Completo. 4 anos estudando a língua pra aprender que vc só fala alemão se passar um período vivendo em algum lugar que fale a língua.
Estávamos em Recife voltando da praia eu, Bebé e Macaca. Alguém falou sobre o meu curso de alemão e Macaca mandou:
– Num fala um prego de alemão! (pros não-nordestinos: ‘um prego’ significa ‘porra nenhuma’)
Eu: Não é bem assim
Bebé: Ah, é? Então como é que se diz “prego”em alemão?
Eu: …..
Perdia o amigo. Mas não a piada. Anos depois ele resolveu começar um curso de francês. Quando nos vimos e ele me deu a notícia, não resisti:
Eu: E como é “prego”em francês?
Ele: CLOU. Eu SABIA que era a primeira coisa que vc ia me perguntar. Foi a minha primeira pergunta, no primeiro dia de aula. A professora não entendeu nada!
E desaguava uma daquelas gargalhadas gostosas e sinceras. Perdia o amigo. Não a piada.
Pena é que nos deixa assim: parece uma piada sem graça.
A todo, obrigada pelo apoio e pelo respeito ao meu silêncio.
Iara
Abaixo, segue matéria veiculada no Correio Braziliense de hoje (02.10):
Adorava viajar(de avião)
Ele nunca teve medo de avião. Afinal, como coordenador de relacionamento com o mercado da Infraero, tinha de voar muito a trabalho. E adorava os “ossos do ofício”. A paixão por viagens era tão grande que Esdras Moreira Lucas, 40 anos, planejava suas férias com muita antecedência. Paraibano, com pai pernambucano e mãe piauiense, ele sempre passava pelo Nordeste. Uma parada em Fernando de Noronha era regra. Depois passava em Recife, para rever a família paterna, e em seguida, quase sempre, Esdras partia para o exterior.
Um autêntico cidadão do mundo, ele colecionava viagens inesquecíveis. Noruega, Itália, França foram alguns dos países visitados por Esdras. Mas, no feriado de carnaval, o destino era certo: a folia pernambucana. Entre Recife e Olinda, ele matava a saudade de primos e amigos.Este ano foi o único, após muito tempo, em que Esdras não conseguiu ir a Pernambuco no
carnaval, por causa de uma reunião de trabalho. Deixou o calor das ladeiras pelas temperaturas congelantes da Noruega. Desde que soube do acidente com o avião, o pai, Edarcy Lucas, morador do Gama, ficou em estado de choque. A família ainda não entende com o maior prazer do filho, viajar, acabou virando o seu algoz.
A mãe de Esdras faleceu há dois anos. Além do pai, moram em Brasília dois irmãos — Tânia, a mais velha, e Júnior, o caçula — e quatro sobrinhos. Solteiro e sem filhos, o paraibano dizia ser um brasiliense de coração. Chegou a receber propostas profissionais para se mudar da capital, mas nunca quis. Formado em administração e direito, gostava de estudar línguas e outros temas relacionados a sua profissão. Sempre contava aos amigos sobre um curso novo que estava fazendo. Era um incansável.
Parentes e amigos ainda estão chocados com o acidente. Lembram a todo momento o espírito brincalhão de Esdras. “Ele costumava dizer que era melhor perder o amigo mas não a piada”, afirma Iara Lima, prima de Esdras. Não serve de consolo, mas os amigos dizem que, ao menos, Esdras morreu fazendo
algo de que gostava muito: voar
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